domingo, 9 de outubro de 2011

That Bridge is On Fire


                Além das colinas do norte, existe um lugar extremamente descomplicado no qual as atendente de telemarketing não utilizam vícios de linguagem e os fios dos fones de ouvido não se enroscam em torno de si mesmos, as pessoas não fazem medições antes de delimitarem seus terrenos e é você que escolhe a música do seu vizinho. Este lugar é também o mesmo lugar em que as pessoas guardam as suas opiniões para si próprias e em que a inflação fica abaixo da meta do governo. Nos dias em que cai, a chuva aguarda gentilmente que seus futuros frutos molhados vistam suas capas de chuva e abram suas sombrinhas para então descer de forma perfeitamente vertical, não molhando as canelas cansadas dos mesmos.
                As caixas dos supermercados retribuem os sorrisos de seus fiéis compradores, que encontraram a marca e produtos desejados e não enfrentaram fila para pagar pelos mesmos. Em casa, os fogões trabalham na temperatura ideal para que não queimem o preparado ao mesmo tempo em que permitem a seus supervisores conversarem ao telefone sobre algum assunto realmente importante e instigante. Todas as noites, o sono chega em seu devido horário e o horário de acordar também chega de forma conveniente. O vento sopra a fumaça dos cigarros para longe daqueles às quais a mesma não apetece e estas então ultrapassam a estratosfera sem contribuir para as emissões de carbono.
                As diferentes divisões da região ao norte das colinas do norte respeitam uma à soberania da outra e de vez em quando competem em esportes realmente elaborados, aos quais as pessoas dão apenas a importância devida. Nas datas comemorativas, as subdivisões familiares se isolam umas das outras e evitam ondas maciças de constrangimento para seus membros menos vividos, ao mesmo tempo em que os presentes são acertados em sua maioria e os amigos secretos são realmente amigos e secretos.
                Receio, entretanto, que este não seja o lugar em que vivemos.
Ao sul das colinas existe um lugar em que as ruas não estão completamente asfaltadas, os alísios do noroeste trazem fuligem das fábricas chinesas para as vias aéreas dos recém nascidos, que acabaram de sair da barriga repleta de colesterol de suas adoráveis mães, que estão deitadas em macas respingadas de vômitos moribundos em quartos de hospitais não devidamente vistoriados pela vigilância sanitária. É neste lugar também em que veículos de comunicação pagam para que outros divulguem neles suas opiniões esdrúxulas a respeito de obras de arte cujo sentido é obscuro e que nem mesmo seus criadores conseguiram descobri-lo de forma satisfatório (de fato, muitos deles apenas cochilaram no processo de transcrição da Mona Lisa e acabaram criando algo que revolucionou as tendências vanguardistas).
Neste lugar, o governo não distribui fones de ouvido e existe certa liberdade individual que permite aos vizinhos escolherem suas próprias músicas, bem como o volume em que as irão escutar e o horário. As chuvas caem sem aviso e nas ruas não completamente asfaltadas formam poças d’água invisíveis – ou que eram invisíveis até você se dar conta de que pisou numa delas. As filas dos supermercados carentes de qualidade neste lugar ao sul são tão grandes que sorrisos estúpidos nem ao menos são dispensados pelos fiéis compradores às suas encarecidamente invisíveis atendentes para agilizar o processo e possibilitar a todos chegarem às suas casas o mais rápido possível, onde atenderão aos telefonemas das atendentes de telemarketing que utilizam tantos vícios de linguagem que fariam até mesmos as obras de arte resultantes de cochilos não planejados dos artistas abortados fazerem certo grau de sentido.
Talvez porque não foram bem alimentadas, pois enquanto discutiam assuntos realmente importantes e realmente entediantes, os fogões carbonizaram seus preparados, ou talvez porque as vias de transporte andam tão congestionadas nesses últimos meses chuvosos, tem-se que o sono das pessoas não consegue chegar a tempo do horário correto. Entretanto, as desigualdades sociais inerentes do processo de colonização permitem ao horário de acordar tomar um caminho mais rápido e chegar a tempo de ser inconveniente. As pessoas não dormem bem. 
Talvez por causa dos gastos exagerados do governo em relação a esportes não tão bem arquitetados, que envolvem pessoas vestidas em roupas com fios de prata aderidos correndo em campos de trigo cuja produção de grãos é extremamente deficiente e buscando acertar esferas em locais que realmente não exigem tamanha boa pontaria, o fato é que há anos a inflação vem ficando acima da meta. Mas isso não é nada que preocupe, contanto que as comemorações ocorridas após os incríveis eventos esportivos sejam extremamente desproporcionais ao seu impacto global na vida dos habitantes da região sul.
Devido às aglomerações familiares resultantes das datas comemorativas, toneladas de plástico são produzidas e transformadas em presentes, entregues aos futuros donos embebidos em perguntas constrangedoras sobre coisas em que as pessoas costumam evitar pensar a respeito de si mesmas, mas que ganham contornos irresistíveis quando se trata dos outros. É claro, como os sorteios dos amigos secretos raramente favorecem aos verdadeiros amigos tais presentes costumam não ser de grande uso, e logo mais tarde se juntam aos agregados de carbono derivados das fábricas chinesas, que não atravessam a estratosfera, juntamente com a fumaça dos cigarros (não sem que esta, é claro, fosse antes borrifada pelo vento na cara de algum alérgico), e só tornam a região sul alguns graus ainda mais quente.
Receio que seja este o lugar em que vivemos.